Atividade programada para a turma do 8º ano A, da Escola Estadual de Ensino Fundamental Rio Jacuí:
O texto (parte) que você vai ler a seguir é de autoria de Mia Couto, premiado escritor de Moçambique, país do continente africano onde a língua portuguesa é idioma oficial.
O momento descrito no conto refere-se à época logo após a longa guerra civil em Moçambique (1977-1992), quando cerca de um milhão de pessoas morreram em combates. Nesse período, o povo moçambicano superava as consequências do violento conflito, ao mesmo tempo em que convivia com uma forte estiagem e uma grande crise de fome, obrigando cinco milhões de civis a se deslocarem dos campos e do território. A guerra na qual o país ficou mergulhado 16 anos, assim como qualquer outra, deixou sequelas com as quais a população ainda tem de conviver: inúmeras minas terrestres que mutilam pessoas até hoje. Mesmo o conflito tendo chegado ao fim em 1992, em 2013 ressurgiu em Moçambique outro conflito armado e um novo acordo de paz ainda não foi concluído.
Chuva: a abensonhada
Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. [...] Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?
Agora, a chuva cai, cantarosa, abençoada. O chão, esse indigente indígena, vai ganhando variedades de belezas. Estou espreitando a rua como se estivesse à janela do meu inteiro país. Enquanto, lá fora, se repletam os charcos a velha Tristereza vai arrumando o quarto. Para Tia Tristereza a chuva não é assunto de clima, mas recado dos espíritos. E a velha se atribui amplos sorrisos: desta vez é que eu envergarei o fato que ela tanto me insiste. Indumentária tão exibível e eu envergando mangas e gangas. Tristereza sacode em sua cabeça a minha teimosia: haverá razoável argumento para eu me apresentar assim tão descortinado, sem me sujeitar às devidas aparências? Ela não entende.
Enquanto alisa os lençóis, vai puxando outros assuntos. A idosa senhora não tem dúvida: a chuva está a acontecer devido das rezas, cerimónias oferecidas aos antepassados. Em todo o Moçambique a guerra está parar. Sim, agora já as chuvas podem recomeçar. Todos estes anos, os deuses nos castigaram com a seca. Os mortos, mesmo os mais veteranos, já se ressequiam lá nas profundezas. Tristereza vai escovando o casaco que eu nunca hei-de usar e profere suas certezas:
- Nossa terra estava cheia do sangue. Hoje, está ser limpa, faz conta é essa roupa que lavei. Mas nem agora, desculpe o favor, nem agora o senhor dá vez a esse seu fato?
- Mas, Tia Tristereza: não será estar chover de mais?
De mais? Não, a chuva não esqueceu os modos de tombar, diz a velha. E me explica: a água sabe quantos grãos tem a areia. Para cada grão ela faz uma gota. Tal igual a mãe que tricota o agasalho de um ausente filho. Para Tristereza a natureza tem seus serviços, decorridos em simples modos como os dela. As chuvadas foram no justo tempo encomendadas: os deslocados que regressam a seus lugares já encontrarão o chão molhado, conforme o gosto das semente. A Paz tem outros governos que não passam pelas vontades dos políticos.
[...]
Agora, a chuva cai, cantarosa, abençoada. O chão, esse indigente indígena, vai ganhando variedades de belezas. Estou espreitando a rua como se estivesse à janela do meu inteiro país. Enquanto, lá fora, se repletam os charcos a velha Tristereza vai arrumando o quarto. Para Tia Tristereza a chuva não é assunto de clima, mas recado dos espíritos. E a velha se atribui amplos sorrisos: desta vez é que eu envergarei o fato que ela tanto me insiste. Indumentária tão exibível e eu envergando mangas e gangas. Tristereza sacode em sua cabeça a minha teimosia: haverá razoável argumento para eu me apresentar assim tão descortinado, sem me sujeitar às devidas aparências? Ela não entende.
Enquanto alisa os lençóis, vai puxando outros assuntos. A idosa senhora não tem dúvida: a chuva está a acontecer devido das rezas, cerimónias oferecidas aos antepassados. Em todo o Moçambique a guerra está parar. Sim, agora já as chuvas podem recomeçar. Todos estes anos, os deuses nos castigaram com a seca. Os mortos, mesmo os mais veteranos, já se ressequiam lá nas profundezas. Tristereza vai escovando o casaco que eu nunca hei-de usar e profere suas certezas:
- Nossa terra estava cheia do sangue. Hoje, está ser limpa, faz conta é essa roupa que lavei. Mas nem agora, desculpe o favor, nem agora o senhor dá vez a esse seu fato?
- Mas, Tia Tristereza: não será estar chover de mais?
De mais? Não, a chuva não esqueceu os modos de tombar, diz a velha. E me explica: a água sabe quantos grãos tem a areia. Para cada grão ela faz uma gota. Tal igual a mãe que tricota o agasalho de um ausente filho. Para Tristereza a natureza tem seus serviços, decorridos em simples modos como os dela. As chuvadas foram no justo tempo encomendadas: os deslocados que regressam a seus lugares já encontrarão o chão molhado, conforme o gosto das semente. A Paz tem outros governos que não passam pelas vontades dos políticos.
[...]
COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Glossário:
Charco: terreno alagadiço, cheio de poças de água Fato: veste, casaco.
Descortinado: sem cortinas, sem trajes. Ganga: tecido barato, geralmente azul ou amarelo.
Emudecer: calar, aquietar-se.
Linguagem do texto:
1. Releia o título e o primeiro parágrafo do conto.
a) As palavras destacadas podem ser localizadas no dicionário?
b) Observando o contexto, é possível definir o significado de tintintinar. Explique qual é.
c) E quanto à palavra indaguava, também é possível defini-la? Explique.
d) A palavra abensonhada também é uma criação do autor. Como essa palavra foi formada?
e) Agora, explique o significado de abensonhada no contexto em que foi empregada.
2. No texto de Mia Couto, há outras palavras formadas pela junção de termos existentes, como cantarosa e Tristereza. Explique como se deu a formação nesses exemplos.
Alguns escritores são reconhecidos pela inovação quanto ao uso da linguagem. Uma das características dos textos de Mia Couto é a utilização de neologismos, ou seja, de palavras ou expressões criadas ou recriadas pelo próprio autor. O autor moçambicano já revelou ter como inspiração o grande autor brasileiro Guimarães Rosa, cujas obras são muito conhecidas pelo uso desse mesmo recurso.
Uma maneira possível de atribuir significado aos neologismos é observar sua forma de construção. Geralmente, o novo termo relaciona-se a alguma palavra já existente na língua portuguesa.
(Atividades extraídas de OLIVEIRA, Tania Amaral.Tecendo linguagens: língua portuguesa: 8ºano. São Paulo:IBEP, 2018.)